Alô Chapada
08/01/2024 - 08:30
Pesquisadores registraram subespécie de saíra-de-cabeça-azul (Silpinia cyanicollis) na Chapada dos Veadeiros que não era vista há quase 100 anos
Foto: Estevão Santos
O que você fazia quando tinha 11 anos? Talvez coisas como brincar de carrinho ou de boneca, caça ao tesouro, pega-pega com os amigos, jogar bola na rua.
O jovem naturalista Estevão Santos, hoje com 18 anos, escolheu percorrer as matas da Serra dos Pireneus (GO) para observar aves e estudar sobre a formação e evolução do Cerrado.
Mas para contar um pouco da história dele, é preciso voltar ainda mais no tempo. O garoto descobriu a ornitologia aos 7 anos de idade, época em que já lia livros sobre os assunto e pesquisava sobre as aves que observava no meio da cidade.
Ele conta que não recebeu o incentivo de ninguém da família ou de amigos para adentrar nesse universo. Seu interesse e amor pela natureza parece ter vindo de “antes do berço”.
Estevão Santos
Grande parte do trabalho de campo realizado pelo jovem observador aconteceu entre 2017 e 2023
Apesar da pouca idade, Estevão já tem cinco artigos científicos publicados sobre suas descobertas. Com apenas 18 anos, isso parece improvável. O primeiro dos cinco foi aos 13 anos, divulgado na Revista Brasileira de Ornitologia.
Na época, ele era coautor de um trabalho que analisou as rotas de migração do falcão peregrino pelas bacias hidrográficas do Araguaia e Tocantins, juntamente com outros pesquisadores.
Ao lado de ornitólogos, botânicos e geógrafos, Estevão percorreu todos os municípios do Distrito Federal, especialmente Brasília, Sobradinho e Planaltina, e ainda todas as mesorregiões de Goiás – sul, sudeste, leste, sudoeste, norte, nordeste e noroeste goiano. A grande parte do trabalho de campo aconteceu entre 2017 e 2023.
Estevão Santos
Estevão busca compreender a natureza não só pelas aves, mas por todos os grupos de seres vivos e suas interações com a paisagem
“É um trabalho longo, que exige paciência, esforço e curiosidade. Isso porque a região a ser mapeada é muito extensa e várias áreas precisaram ser revisitadas. Cada parte de Goiás e Distrito Federal que visitamos tem características muito diferentes, apesar de todas estarem dentro do Cerrado, explica Estevão, estudante da Universidade de Brasília (UnB).
O garoto já acumula 1,2 mil espécies de aves registradas ao longo de sua trajetória. Somente em Goiás e Distrito Federal, o estudo contempla mais de 650 espécies.
Interação entre ecossistemas
O que norteia o trabalho de Estevão é mapear aves de Mata Atlântica e Amazônia que adentram os limites do Cerrado, um ecossistema savânico e mais aberto, no qual as florestas são menores e mais secas.
Incansável, ele ressalta que os registros feitos de aves que são originárias de outros biomas dentro do Cerrado, como o amazônico sabiá-bicolor e o benedito-de-testa-amarela, endêmico da Mata Atlântica, mostram que essa porção central de Goiás era muito mais rica e complexa no passado.
Essas catalogações reforçam, também, a necessidade de explorar matas que restaram no Cerrado, pois, mesmo áreas desmatadas, podem abrigar espécies desaparecidas.
Para encontrar essas espécies em Goiás, o naturalista visitou – além da Serra dos Pireneus – a Chapada dos Veadeiros, o Parque Estadual de Terra Ronca e o Parque Nacional das Emas.
Estevão Santos
Durante a pandemia, entre 2020 e 2021, Estevão morou em um sítio no alto da Serra dos Pireneus, uma das áreas de altitudes mais elevadas do estado
Durante a pandemia, entre 2020 e 2021, ele morou em um sítio no alto da Serra dos Pireneus, uma das áreas de altitudes mais elevadas do estado, onde o clima é localmente mais frio. No topo da serra, o afloramento de rochas antigas favorece a presença de um tipo de Cerrado muito mais restrito, o rupestre, repleto de espécies endêmicas.
"É um dos pontos mais altos de um grande divisor continental de águas que corta o Brasil ao meio, e divide as bacias hidrográficas dos rios Tocantins e Paraná. De um lado da Serra, nasce o Rio das Almas, que é afluente do Tocantins, e banha a Amazônia no norte do Brasil. Do outro, nasce o Rio Corumbá, afluente do Paraná, que banha a Mata Atlântica do sul e sudeste do país. Graças a essas particularidades hidrográficas, ao clima mais frio e a posição mais alta no relevo, várias espécies de aves atlânticas aparecem na Serra dos Pireneus, e foi nessa localidade que eu comecei os meus estudos sobre elas, ainda em 2017" — Estevão Santos, ornitólogo e naturalista.
Redescoberta da saíra-de-cabeça-azul na Chapada dos Veadeiros
Acompanhado do biólogo Marcelo Kuhlmann, Estevão conseguiu registrar uma subespécie rara de saíra-de-cabeça-azul, a Stilpnia cyanicollis albotibialis, em dezembro de 2020 em uma fazenda.
Ao todo, são sete subespécies, mas essa em específico havia sido observada pela primeira e, até então única vez na Chapada, em 1929. A ave foi encontrada nas primeiras horas do segundo dia de expedição.
“O indivíduo estava se alimentando de frutas ao lado de outras saíras. Nós ficamos eufóricos e surpresos porque esse bicho estava desaparecido há quase 100 anos. A Silpinia cyanicollis é uma espécie amazônica, mas as populações da Chapada pertencem a uma subespécie diferente da amazônica”, conta.
Sobre esse desaparecimento, o naturalista acredita que a espécie prefira matas maiores e mais frondosas, com mais folhas e ramos, e que estas muitas vezes ficam em locais de difícil acesso. Além disso, ele afirma que a região da Chapada permaneceu pouco explorada durante muito tempo, tendo aumentado o número de observadores nos últimos anos.
Primeiro registro do sabiá-bicolor do estado de Goiás
Também comum na região amazônica, o sabiá-bicolor (Turdus hauxwelli) tinha raros registros no Cerrado, restritos principalmente ao oeste de Mato Grosso. A ave foi encontrada numa mata relativamente pequena e desmatada em janeiro de 2023, no município de Taquaral de Goiás.
“Estava com dois parceiros de campo observadores, o André De Luca e o Jayrson Araújo, que viu a ave primeiro e nos chamou. Quando eu e André chegamos perto, conseguimos confirmar que se tratava de um sabiá-bicolor através do canto”, lembra Estevão.
O feito contribuiu com a expansão da espécie para além do domínio amazônico, ampliando a distribuição do animal em 650 km.
Estevão Santos
Além de fotogravar as aves, Estevão gosta de desenhá-las e anotar suas características
“O sabiá-bicolor e a saíra-de-cabeça-azul expandem a distribuição através das matas de galeria e das florestas estacionais semideciduais, sobretudo as matas relacionadas às bacias dos rios Tocantins e Araguaia, que têm suas nascentes no planalto de Goiás. Essas florestas representam extensões interioranas das florestas Atlântica e Amazônica através do Cerrado, e a composição da sua fauna e flora é relacionada a essas duas origens”, afirma.
Os dois registros, tanto o da saíra-de-cabeça-azul quanto o do sabiá-bicolor, resultaram em publicações em razão da raridade para a Chapada dos Veadeiros e estado de Goiás como um todo. No entanto, no Mato Grosso, onde também há área de Cerrado, ambas as ocorrências são comuns.
De acordo com Estevão Santos, isso acontece porque as vegetações dos dois estados são bem diferentes. Goiás está na porção nuclear do Cerrado e no ponto mais elevado do Planalto Central, enquanto Mato Grosso já está no oeste do Cerrado, numa região de topografia mais baixa e já na área de transição com a Amazônia.
“Em Goiás, a presença de Mata Atlântica é mais pronunciada e influente em quase todas as matas, sobretudo porque quase metade do estado está inserida na bacia do Rio Paraná, que é uma das principais rotas por onde as florestas com características atlânticas se expandiram pelo Cerrado”.
Registros notáveis de migrantes de inverno para Goiás e Distrito Federal
Estevão Santos
Espécie exclusiva da Mata Atlântica, tesourinha-da-mata ocorre em florestas preservadas e é difícil de ser encontrada
Entre os registros, o jovem Estevão destaca dois deles: a tesourinha-da-mata (Phibalura flavirostris) em julho de 2021, no Distrito Federal, e a maria-preta-de-bico-azulado (Knipolegus cyanirostris), no mês seguinte, em Goiás.
Estevão procurava pela tesourinha na natureza desde 2017. Antes, ele só havia visto exemplares dessa ave em museus pelo Brasil afora e no exterior. Os indivíduos haviam sido coletados no Cerrado por naturalistas no século 20.
A maria-preta-do-bico-azul também era almejada pelo ornitólogo desde o mesmo ano. “Durante uma saída despretensiosa com o amigo Bruno Rennó, localizamos a ave ‘por acaso’ na borda de uma mata. Cogitamos que ela havia chegado após as frentes frias muito intensas que aconteceram em julho e agosto”, lembra ao destacar que esse foi o 2º registro da maria-preta-de-bico-azul para o estado.
Para ele, o ponto mais importante do trabalho não foi apenas divulgar os novos registros para o Cerrado, mas abordar um grupo de aves migratórias ainda pouco conhecido e compreendido, que são os “migrantes austrais”, aves que se deslocam do sul do Hemisfério Sul para o interior do continente no inverno.
Além das aves, Estevão se interessa pela coleta de plantas e fotografia de outros animais, como anfíbios e répteis, cujos padrões de distribuição geográfica são muito parecidos com os das aves como, por exemplo, o sapinho-do-folhiço (Rhinella sebbeni), relacionado a um grupo de espécies da Amazônia, e o papa-vento (Enyalius capetinga), mais relacionado a um grupo da Mata Atlântica.
Próximos passos
Agora, o naturalista se concentra em publicar os resultados na literatura. “As informações ‘mais urgentes’ eu priorizei escrever nos artigos, mas ainda há muita coisa inédita que compilei no meu livro que será publicado entre 2024 e 2025”, diz. Além disso, ele está trabalhando na produção de textos mais líricos e descritivos, áreas que o fascinam.
* Com informação g1
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